Artigo: Paternidade socioafetiva e Escritura Pública de reconhecimento

Recentemente se fez lavrar em nosso tabelionato a primeira escritura pública de reconhecimento de paternidade socioafetiva. Ato formal, solene, mas de necessidade questionável e eficácia duvidosa, entretanto, pela situação prática que se apresentou, nos pareceu a melhor solução.

Praticado o ato, com a celeridade exigida pela situação apresentada, restou para o tabelião uma inquietação intelectual: Seria realmente interessante para a sociedade que existisse alguma espécie de regulamento normativo sobre o tema?  O assunto seria merecedor de uma manifestação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ?
De fato, já existe em alguns estados minucioso regulamento normativo sobre o procedimento administrativo de reconhecimento de paternidade socioafetiva, para casos em que não exista no registro civil nenhuma paternidade registrada.
Garimpando neste ambiente virtual foram localizados os regulamentos editados pela Corregedoria Geral da Justiça do Estado de  Santa Catarina  Provimento 11/2014 (acesso em http://www.anoreg.org.br/images/arquivos/Provimento_11.pdf )  e do Estado do Amazonas Provimento nº 234/2014 CGJ-AM (comentários em:   http://www.cnj.jus.br/noticias/judiciario/77016-corregedoria-autoriza-reconhecimento-voluntario-de-paternidade-socioafetiva )
Em São Paulo, segundo o conhecimento deste tabelião, o procedimento ainda não teve o mesmo tratamento, mas não é caso inédito, tendo sido objeto de análise em diversas situações específicas e, em todas elas, houve o reconhecimento esperado e desejado pelas partes envolvidas.
Recentemente a CGJ-SP fez editar o Provimento nº 36/2014 (acesso possível em http://www.arpensp.org.br/?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=MjE3OTc=) onde foi normatizada a situação em que exista a intenção de formalizar a paternidade socioafetiva pela via da adoção formal.
É costume nacional repetir e reconhecer o valor do dito popular: Pai é quem cuida e não quem dá o nome! Mas também é de conhecimento geral a existência de um velho costume nacional (inclusive conhecido pela denominação pejorativa “adoção à brasileira”) que se resume em declarar paternidade biológica de criança cuja paternidade é apenas afetiva.
Inquestionavelmente, por definição legal, pai é aquele cujo nome consta no Registro Civil das Pessoas Naturais e, portanto, é comum ocorrer casos em que, inexistindo o registro de qualquer paternidade biológica, pessoa motivada por sentimentos relacionados a filhos de seu cônjuge ou companheiro, vem a declarar uma relação de paternidade biológica que efetivamente não existe e que, portanto, não se sustentaria diante de um simples exame biológico.
Retomando ao caso prático acima citado.
A situação apresentada, que não foi a primeira e certamente não será a última vivenciada nos balcões de atendimento dos cartórios, pode ser resumida da seguinte forma:
O cidadão questiona o escrevente: Como faço para dar meu nome para meu filho?
O funcionário então vai buscar mais informações sobre a situação. Questiona sobre a idade do “filho”, o tempo, local e detalhes do registro de nascimento e, a depender, da situação prática poderá oferecer a possibilidade de solução para aquele drama pessoal.
São muitas as situações possíveis.
Em algumas delas, o Oficial de Registro Civil poderá realizar todo o procedimento, inclusive, de forma gratuita,  em outras, a intervenção notarial poderá ser imprescindível e uma escritura pública de reconhecimento de paternidade pode ser a solução mais viável.
Como ato unilateral que é, o reconhecimento de paternidade pode ser declarado em qualquer  tabelionato, mesmo que a mãe e a criança não estejam presentes;  elas podem residir e estar em outro Estado da Federação ou ainda em país estrangeiro. A escritura então lavrada será o primeiro passo para o procedimento de alteração daquele registro de nascimento incompleto.
É um ato notarial importante, tal escritura de reconhecimento,  tem baixo custo para o interessado e, regra geral, é fonte de grande satisfação pessoal para o declarante e também para o tabelião que lavra o ato.
Mas como em todas as situações, pode existir algum problema ou dificuldade.
Quando o cidadão chega em um cartório e declara que deseja dar o seu nome para o filho, por vezes (e foi exatamente o que descobriu este tabelião no caso prático citado) a filiação não é biológica, mas socioafetiva.  Nesta situação o cidadão nem mesmo percebe que, ao declarar a paternidade em relação à criança, estaria fazendo uma falsa declaração, pois em sua concepção, por ter sentimento e tratamento idênticos ao de pai e filho (por vezes até mais próximo e carinhoso do que ocorre com a paternidade biológica) ele sente-se verdadeiramente o pai e deseja o reconhecimento formal desta situação.
Entretanto, uma vez reconhecidos os contornos da situação, não deve o tabelião lavrar o tipo de ato notarial inicialmente cogitado: o reconhecimento de paternidade por meio de escritura pública a ser lavrada. A providência que sempre se tomou em tal situação era orientar as partes sobre a possibilidade da realização do processo de adoção formal junto ao Poder Judiciário.
Mas outra solução também pode ser tentada.
Certamente o tabelionato de notas pode auxiliar o seu cliente neste problema particular que representa um drama pessoal e, não raro, é fonte de grande insatisfação pessoal, especialmente para a criança que não tem em seu documento civil  o nome de “seu” pai (ou de qualquer outro), sendo certo que para tal criança o pai afetivo é o único conhecido, a única pessoa na qual confia e ama.
A solução dada à necessidade de nosso cliente, cujo amado filho lhe cobrava o nome em seu registro de nascimento, realizado em longínquo Estado da Federação, por uma jovem mãe sem companheiro e que ao abandonar a sua terra natal e chegar em nossa região trouxe consigo muita esperança, pouca bagagem e um filho pequeno para educar, foi a redação da escritura pública, cuja esquematização é reproduzida adiante.
Se, para economistas é costume afirmar que um gráfico vale mais de mil palavras (embora para quem não possua familiaridade com este tipo de instrumento gráfico, suas informações não são compreendidas em sua integridade e, portanto, tal afirmação seria um exagero de retórica) para cartorários em geral, é comum asseverar que uma minuta vale mais do que as mil palavras que ela pode conter:
ESCRITURA DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
Aos  XX  dias do mês de xx do ano de xxxx,  neste Distrito de Sousas, da cidade e comarca de Campinas, do Estado de São Paulo, em Cartório, perante mim  Tabelião compareceu  como outorgante AFS, brasileiro, etc… casado com DMS, brasileira,  etc… também presente neste ato e que comparece na qualidade de anuente, ambos residentes e domiciliados … nesta cidade de Campinas – SP. Os presente reconhecidos e identificados por mim tabelião, via dos documentos exigidos e exibidos, do que dou fé. E, pelo outorgante me foi declarado o seguinte: Que desde o início do ano de xxx, iniciou um relacionamento afetivo com a ora anuente, com quem veio a se casar em data de xx conforme Termo de Casamento xxx  que desde o início deste relacionamento vem convivendo com o filho de sua esposa, VJ, nascido  em —- na cidade de …, no Estado da Bahia e que, em razão deste convívio formou-se entre ambos o vínculo familiar e afetivo reconhecido como paternidade socioafetiva e que desde longa data o tratamento entre ambos tem sido exatamente o mesmo dispensado entre pai e filho. Por ele foi declarado ainda que espontaneamente, de sua livre vontade e sem constrangimento algum, pela presente escritura de reconhecimento e declaração vem reconhecer a existência da paternidade socioafetiva do menor VJ, nascido no dia xx de xxx do ano de xxxx, na cidade de xxx, no Estado da Bahia, filho biológico de sua esposa, acima qualificada e que, à época do nascimento, tinha o nome de solteira, DM, criança esta registrada como filho de pai ignorado, no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais do Município de … no Estado da Bahia, no livro A-xx, fls.xx, sob nº xxxx,  Por ele foi declarado ainda que é seu desejo que, com o reconhecimento da paternidade socioafetiva, a referida criança passe a usar seu nome de família e chamar-se VJS, tendo como avós paternos  EFS  e CFS, ambos cidadãos brasileiros e que, segundo declara o outorgante, são naturais do Estado de ….   Então, pela anuente DMS, que em solteira, chamava-se  DM, me foi dito que concordava com tudo o quanto foi afirmado pelo seu marido e outorgante, estando de pleno acordo com o reconhecimento e alteração do nome de seu filho; declarando ainda que sabe ser da vontade se seu filho o  reconhecimento documental da paternidade socioafetiva que efetivamente existe conforme o declarado por AFS, declarando ainda que o pai biológico de seu filho, faleceu há muitos anos, antes ainda do próprio nascimento e que comparece neste ato para expressar seu consentimento à realização deste reconhecimento formal da paternidade socioafetiva existente.  Pelas partes, outorgante declarante e pela anuente me foi dito ainda que, pela presente escritura, expressamente autorizavam o Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais Competente a proceder a todas as  diligências e expedientes que se mostrarem necessários para dar efetividade a este reconhecimento de paternidade socioafetiva, buscando, se entendido como necessária, a manifestação do representante do Ministério Público  ou autorização expressa do Juiz de Direito Corregedor Permanente  para as devidas averbações e anotações no  registro de nascimento do referido menor;  a ser realizado em procedimento análogo ao previsto no artigo 26 da Lei 8.069 de 13/07/1990 (Estatuto da Criança de Adolescente) e artigo 1º – II da Lei n.º 8560, de 29 de dezembro de 1992 e ainda no Provimento n° 16 do Conselho Nacional de Justiça, de 17 de fevereiro de 2012.  Este tabelião certifica ainda ter orientado os interessados da possibilidade de realizar este reconhecimento de paternidade socioafetiva por meio de procedimento judicial de adoção e diante da vasta doutrina existente e do atual estágio da jurisprudência nacional, que expressamente consideram possível a ocorrência deste reconhecimento de paternidade pela via administrativa, dispensada a realização do procedimento judicial de adoção convencional, o interessado decidiu pela realização desta escritura pública, ato solene, dotado de publicidade e formalidade, para que seja possível a realização da  providencia mais célere e igualmente eficaz, buscando atender o desejo da criança acima qualifica, que, efetivamente considera o declarante como seu pai.  De, como assim o disseram, dou fé. A pedido do outorgante e da anuente, lavrei o presente instrumento, o qual feito, lhe sendo lido em voz alta e clara, por estar conforme, outorgam, aceitam e assinam. Dispensada a presença e assinatura de testemunhas instrumentárias na forma da lei. Eu xxxx tabelião, digitei, conferi, fiz imprimir, subscrevi e assino.
Em arremate, retoma-se a afirmação do início: A escritura feita, realmente, é de necessidade questionável e eficácia duvidosa, mas certamente será útil para se iniciar qualquer procedimento administrativo ou judicial de reconhecimento administrativo (a ser processado junto ao Registro Civil das Pessoas Naturais competente) ou de adoção formal (a ser processado junto à Vara Judicial competente).
*Marco Antonio de Oliveira Camargo é títular da delegação do registro civil e notas no distrito de Sousas, em Campinas – SP. Foi tabelião de notas e protesto em Matão – SP e oficial interino em Jarinu.
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O presente artigo é uma reflexão pessoal do colunista e não a opinião institucional do CNB-CF.

Fonte: http://www.notariado.org.br/index.php?pG=X19leGliZV9ub3RpY2lhcw==&in=NTY1MA==