STJ consolida jurisprudência que permite alterar registro civil de transexual
A questão ainda não está pacificada nas diversas cortes da Justiça brasileira, mas o Superior Tribunal de Justiça vem, cada vez mais, consolidando uma jurisprudência humanizada
A inexistência de lei que regulamente as hipóteses nas quais uma pessoa pode ou não alterar seu registro civil tem levado ao Poder Judiciário um número considerável de ações movidas, sobretudo, por transexuais que querem em seus documentos um nome condizente com o seu novo gênero. A questão ainda não está pacificada nas diversas cortes da Justiça brasileira, mas o Superior Tribunal de Justiça vem, cada vez mais, consolidando uma jurisprudência humanizada sobre esse assunto.
O STJ vem autorizando a modificação do nome que consta do registro civil, assim como a alteração do sexo. Mas, nem todos os juízes decidem assim. Conforme mostram os recursos que chegam ao tribunal, alguns juízes permitem a mudança do prenome do indivíduo, com fundamento nos princípios da intimidade e privacidade, para evitar principalmente o constrangimento à pessoa. Outros, porém, não acatam o pedido, negando-o em sua totalidade, com base estritamente no critério biológico.
Há ainda decisões que, além da alteração do prenome, determinam que a mesma seja feita com a ressalva da condição transexual do indivíduo, não alterando o sexo presente no registro. Outras determinações não só permitem a mudança do prenome como a do sexo no registro civil.
As decisões do STJ vão na linha de que a averbação deve constar apenas do livro cartorário, vedada qualquer menção nas certidões do registro público, sob pena de manter a situação constrangedora e discriminatória.
De acordo com o ministro da 4ª Turma do STJ, Luis Felipe Salomão, se o indivíduo já fez a cirurgia e se o registro está em desconformidade com o mundo fenomênico, não há motivos para constar da certidão. Isso porque seria uma execração ainda maior para ele ter que mostrar uma certidão em que consta um nome que não corresponde ao do seu sexo. “Fica lá apenas no registro (do cartório), preserva terceiros e ele segue a vida dele pela opção que ele fez”, afirmou o ministro.
Para a ministra Nancy Andrighi, quando se iniciou a obrigatoriedade do registro civil, a distinção entre os dois sexos era feita baseada na conformação da genitália. Hoje, com o desenvolvimento científico e tecnológico, existem vários outros elementos identificadores do sexo, razão pela qual a definição de gênero não pode mais ser limitada somente ao sexo aparente.
“Todo um conjunto de fatores, tanto psicológicos quanto biológicos, culturais e familiares, devem ser considerados. A título exemplificativo, podem ser apontados, para a caracterização sexual, os critérios cromossomial, gonadal, cromatínico, da genitália interna, psíquico ou comportamental, médico-legal, e jurídico”, explicou a ministra.
Segundo Nancy, se o Estado consente com a possibilidade de fazer cirurgia de transgenitalização, deve também prover os meios necessários para que o indivíduo tenha uma vida digna e, por conseguinte, seja identificado jurídica e civilmente tal como se apresenta perante a sociedade.
Realidade psicológica
O primeiro recurso sobre o tema foi julgado no STJ em 2007, sob a relatoria do ex-ministro Carlos Alberto Menezes Direito. No caso, a 3ª Turma do STJ, seguindo o voto do ministro, concordou com a alteração, mas definiu, na ocasião, que deveria ficar averbado no registro civil do transexual que a modificação do seu nome e do seu sexo decorreu de decisão judicial.
De acordo com o ministro, não se poderia esconder no registro, sob pena de validar agressão à verdade que ele deve preservar, que a mudança decorreu de ato judicial decorrente da vontade do autor e que se tornou necessário ato cirúrgico.
“Trata-se de registro imperativo e com essa qualidade é que se não pode impedir que a modificação da natureza sexual fique assentada para o reconhecimento do direito do autor”, escreveu em sua decisão.
Em outubro de 2009, a 3ª Turma voltou a analisar o tema e, em decisão inédita, garantiu ao transexual a troca do nome e do gênero em registro, sem que constasse a anotação no documento, mas apenas nos livros cartorários.
A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, afirmou que a observação sobre alteração na certidão significaria a continuidade da exposição da pessoa a situações constrangedoras e discriminatórias. “Conservar o ‘sexo masculino’ no assento de nascimento do recorrente, em favor da realidade biológica e em detrimento das realidades psicológica e social, bem como morfológica, pois a aparência do transexual redesignado em tudo se assemelha ao sexo feminino, equivaleria a manter o recorrente em estado de anomalia, deixando de reconhecer seu direito de viver dignamente”, disse na ocasião.
O mesmo entendimento foi adotado pela 4ª Turma, em dezembro de 2009. O relator do recurso, ministro João Otávio de Noronha, destacou que a Lei 6.015/73 (Lei de Registros Públicos) estabelece, no artigo 55, parágrafo único, a possibilidade de o prenome ser modificado quando expuser seu titular ao ridículo.
“A interpretação conjugada dos artigos 55 e 58 da Lei de Registros Públicos confere amparo legal para que o recorrente obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o pelo apelido público e notório pelo qual é conhecido no meio em que vive”, afirmou no julgamento.
Na ocasião, Noronha afirmou ainda que o julgador não deve se deter em uma codificação generalista e padronizada, mas sim adotar a decisão que melhor se coadune com valores maiores do ordenamento jurídico, tais como a dignidade das pessoas.
O ministro defendeu a averbação no livro cartorário “para salvaguardar os atos jurídicos já praticados, manter a segurança das relações jurídicas e solucionar eventuais questões que sobrevierem no âmbito do direito de família (casamento), no direito previdenciário e até mesmo no âmbito esportivo”.
Projeto de lei
A regulamentação da alteração do registro civil é tema do Projeto de Lei 5.002/2013, do deputado Jean Wyllys (PSol-RJ) e da deputada Erika Kokay (PT-DF), em tramitação na Câmara dos Deputados. A proposta visa a viabilização e desburocratização do direito do individuo de ser tratado conforme o gênero escolhido por ele. Nesse sentido, obriga o SUS e os planos de saúde a custearem tratamentos hormonais integrais e cirurgias de mudança de sexo a todos os interessados maiores de 18 anos, aos quais não será exigido nenhum tipo de diagnóstico, tratamento ou autorização judicial. Com informações da assessoria de imprensa do STJ.
Fonte: Conjur