Artigo: “A (im)possibilidade de ação de regresso em face do líder espiritual das organizações religiosas, pelos atos praticados em nome destas, à luz das funções e atribuições do RCPJ”
O presente artigo tem como objetivo analisar a (im)possibilidade de ação de regresso em face do líder espiritual das organizações religiosas, pelos atos praticados em nome destas, à luz das funções e atribuições do RCPJ. Trata-se de pesquisa por meio de método dedutivo, com procedimento de coleta de dados bibliográfico e documental. Verificou-se que as organizações religiosas respondem pelos atos dos seus líderes espirituais no limite do que lhes for imposto no estatuto social, sob pena de serem estes responsabilizados pelos atos praticados. Para tanto, necessária se faz que a organização religiosa esteja regularizada no RCPJ, órgão competente para deferir atos cadastrais das entidades no CNPJ, sob pena de as alterações não serem reconhecidas.
Palavras–chave: Organizações Religiosas. Personalidade Jurídica. Líder espiritual. Responsabilidade Civil. Ação de regresso. RCPJ.
SUMÁRIO: 1. Introdução: 01; 2. A constituição da personalidade jurídica das organizações religiosas: 02; 3. Aspectos gerais da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado: 05; 4. A (im)possibilidade de ação de regresso em face do líder espiritual das organizações religiosas, pelos atos praticados em nome destas, à luz das funções e atribuições do RCPJ: 08; 5. Considerações finais: 13; 6. REFERÊNCIAS: 14.
1. Introdução
A personalidade jurídica das organizações religiosas inicia-se com o registro no ato constitutivo no RCPJ competente. A partir de então, surge um novo titular de direitos de deveres com autonomia e separação patrimonial em relação aos seus líderes espirituais, que deverão agir nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo.
Desse modo, o presente artigo teve como objetivo analisar a (im)possibilidade de ação de regresso em face do líder espiritual das organizações religiosas, pelos atos praticados em nome destas, à luz das funções e atribuições do RCPJ.
Na primeira delas, analisar-se-à os aspectos pertinentes à constituição da personalidade jurídica das organizações religiosas.
A segunda seção abordará a responsabilidade civil em um sentido amplo, para, posteriormente, apresentar a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado, sobretudo das organizações religiosas.
A terceira e derradeira seção, apresentará uma análise doutrinária e jurisprudencial acerca da possibilidade de ação de regresso em face do líder espiritual das organizações religiosas.
Em razão da ausência de jurisprudências que tratassem de organizações religiosas lato sensu, pelos atos praticados em nome destas, à luz das funções e atribuições do RCPJ, para efeito da presente abordagem, e como são casos de maior proeminência e visibilidade nacional, optou-se por apresentar julgados em que são parte as igrejas envangélicas.
2. A constituição da personagem jurídica das organizações religiosas
A fim de que se possa compreender as especificidades acerca da responsabilidade do líder espiritual das organizações religiosas, pelos atos praticados em nome desta, à luz das funções e atribuições do Registro Civil das Pessoas Jurídicas – RCPJ, necessário primeiro compreender o procedimento para constituição da personalidade jurídica, sobretudo, a das organizações religiosas, o que se passa a fazer.
A personalidade jurídica consiste em uma autorização genérica para a prática de atos e negócios jurídicos não proibidos, o que possibilita a criação de um ente que transcende à pessoa de cada um dos interessados com direitos e obrigações inerentes à personalidade, mas distinta da figura de cada sócio que componha a sua formação (TOMAZETTE, 2014).
De acordo com Lenza (2018, p.180), pessoa jurídica consiste em:
As organizações religiosas, aqui compreendidas todas as Igrejas e/ou entidades religiosas, são consideradas pessoas jurídicas de direito privado, conforme previsto no IV do artigo 44 do Código Civil brasileiro de 2002 – CC/02 (BRASIL, 2002).
O conceito de pessoa jurídica, de acordo com Coelho (2020, p.186), revela elementos imprescindíveis para sua constituição, quais sejam:
Em termos de eficácia de aquisição da personalidade jurídica, todos aqueles que desejarem criar uma organização religiosa para professar sua fé e exercer livremente o culto, deverão, obrigatoriamente, atender aos ditames dos artigos 120 e 121 da Lei nº 6.015/73 – LRP, com registro e inscrição de atos constitutivos no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas (PONZILACQUA, 2016).
Acerca da elaboração do ato constitutivo com o seu respectivo registro, dispõe o artigo 45 do CC\02, ipsis litteris:
Assim, na prática de atos negociais, os administradores, dentro dos limites de seus poderes estabelecidos no estatuto, obrigarão a organização religiosa, que deverá cumpri-los e honrá-los (PAES, 2020).
Ressalta-se, que referida administração, dar-se-á de acordo com o sistema organizacional seguido pela organização religiosa, quais sejam: episcopal, presbiteriano e congregacional (COSTA, 2010).
No sistema episcopal prepondera o poder decisório centralizado em um líder maior que exerce autoridade, geralmente de forma incontestável, na qual as esferas superiores têm autoridade e ingerência sobre as esferas inferiores e, para estar numa camada superior da pirâmide, é preciso passar pela camada imediatamente inferior.
No sistema presbiteriano, o poder decisório fica delegado ao presbitério, órgão responsável apenas pelas decisões administrativas da Igreja ou em algumas denominações religiosas responsável pelas decisões administrativas e espirituais, em que se afirma o princípio da prestação de contas e dependência e submissão mútuas entre as igrejas locais.
A ausência do registro, em contrapartida, caracteriza sociedade de fato em que os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum e respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações sociais (BRASIL, 2002).
Acerca da liceidade de seu objetivo, explicam Gagliano e Pamplona Filho (2019) que traduz a ideia de estar o objetivo dentro do campo de permissibilidade normativa, o que significa dizer não ser proibido pelo direito e pela moral:
3. Aspectos gerais da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado
Como visto, a partir do momento em que há a distinção legal entre a pessoa jurídica e os membros que a compõe, por consequência, verifica-se que as pessoas jurídicas passam a ser titulares nos âmbitos obrigacional e processual, bem como a ter responsabilidades patrimoniais.
Antes, porém, de aprofundar o estudo acerca da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado, necessária se faz a compreensão da responsabilidade civil amplamente estabelecida.
Entende-se assim que o termo responsabilidade, no Direito Civil, indica a consequência de uma obrigação não adimplida, seja por virtude da lei ou por força de relação contratual que irá gerar, para o sujeito que a descumpriu, o dever de reparar ou indenizar a vítima pelo dano sofrido, ou seja, suportar todas as consequências jurídicas advindas desse inadimplemento (VENOSA, 2017).
Para que se configure a responsabilidade civil, é necessária a existência de pressupostos classificados em essenciais, quais sejam: a conduta, o dano e o nexo de causalidade; o acidental, por sua vez, é a culpa, explicada posteriormente.
O dever de indenizar está previsto no artigo 927 do Código Civil, que estabelece que “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo” (BRASIL, 2002). Referido dispositivo, remete ao ato ilícito, conceituado no artigo 186 do Código Civil como: “a ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2002). Daí, portanto, abstrai-se os elementos, que se passa a explicar.
No que diz respeito à conduta, Gagliano e Pamplona Filho (2016, p. 164) “consignam que somente o homem pode ser responsabilizado civilmente”, ou seja, a ação ou omissão humana é um pressuposto indispensável à caracterização da responsabilidade, isso porque a conduta humana, guiada pela vontade do agente, pode ser positiva, caracterizando, de fato uma ação ou negativa, caracterizando uma omissão, acarretando dano ou prejuízo a outrem.
“O dano é a lesão (diminuição ou destruição) que, devido a certo evento, sofre uma pessoa, contra sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral” (DINIZ, 2016, p. 139). Se não houver dano, não há que se falar em indenização, já que não há a caracterização de prejuízo.
O nexo de causalidade, por fim, é a ligação da conduta do autor com o dano. De acordo com Coelho (2020) pode ser este classificado em: simples, constituído pela conduta delituosa de apenas um autor ou plurimo, constituído pela conduta delituosa de mais de um autor, destacando a solidariedade entre os autores do ilícito.
Gonçalves (2020, p.295) esclarece que para haver obrigação de indenizar, não basta que o autor do fato danoso tenha procedido ilicitamente, violando um direito (subjetivo) de outrem ou infringindo uma norma jurídica tuteladora de interesses particulares. A obrigação de indenizar não existe, em regra, só porque o agente causador do dano procedeu objetivamente mal. É essencial que ele tenha agido com culpa: por ação ou omissão voluntária, por negligência ou imprudência, como expressamente se exige no art. 186 do CC/02 (BRASIL, 2002).
Porém, apesar disso, o CC/02 prevê que o agente será obrigado a indenizar independente do grau da culpa, uma vez que dispõe que a indenização será calculada pela extensão do dano, e não pelo grau da culpa (BRASIL, 2002). Uma vez configurados os elementos, a responsabilidade civil é classificada em diferentes espécies, quanto ao seu fundamento, sendo objetiva ou subjetiva; quanto ao fato gerador, sendo contratual ou extracontratual; e em relação ao agente, sendo direta ou indireta.
A responsabilidade civil subjetiva tem sua origem na teoria clássica ou da culpa, uma vez que, a culpa é elemento obrigatório para a sua configuração, sendo aplicada quando o agente comete o ato ilícito, dolosa ou culposamente, ou quando o sujeito pratica o ilícito voluntariamente, ou ainda deixa com que isto ocorra por negligência ou imprudência. Já a responsabilidade civil objetiva possui como fundamento a teoria do risco (DINIZ, 2016).
Ressalta-se que, na ausência de lei expressa que garanta a aplicação da responsabilidade civil objetiva será utilizada a responsabilidade subjetiva, ou seja, a responsabilidade independente de culpa será aplicada a regra geral disposta no CC/2002, onde prevalece a responsabilidade subjetiva pelo cometimento de ato ilícito (BRASIL, 2002).
A responsabilidade direta é aquela na qual o dano é causado diretamente pelo agente, isto é, o ato foi causado pelo próprio agente. Entretanto, na responsabilidade indireta, o dano é causado por um terceiro com o qual o agente possui vínculo de responsabilidade: fato de animal ou de coisas inanimadas sobre sua guarda (COELHO, 2020).
Tecidas as considerações acerca dos regimes da responsabilidade civil brasileira e suas teorias, passa-se a observar as especificidades da responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado, em que os empresários individuais e todos aqueles que compõe o rol do artigo 44 do CC/02 respondem independentemente de culpa pelos danos causados (BRASIL, 2002).
Em razão do princípio da autonomia, instituído pelo artigo 49-A do CC/02, em que se estabelece que a pessoa jurídica e cada um dos seus membros são sujeitos de direito autônomos, distintos, inconfundíveis, explica Coelho (2020, p. 208, grifo nosso) que:
4. A possibilidade de ação de regresso em face do líder espiritual das organizações religiosas, pellos atos praticados em nome destas, à luz das funções e atribuições do RCPJ
A priori, necessário compreender as funções e atribuições do RCPJ, cuja principal finalidade é garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, conforme artigo 1º da Lei nº 6.015/73 – Lei dos Registros Públicos, bem como artigo 1º da Lei nº 8.935/94 – Lei dos Notários e Registradores.
O artigo 114 da Lei dos Registros Públicos prevê as atribuições do RCPJ, como se lê:
- os contratos, os atos constitutivos, o estatuto ou compromissos das sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, bem como o das fundações e das associações de utilidade pública;
- – as sociedades civis que revestirem as formas estabelecidas nas leis comerciais, salvo as anônimas.
- – os atos constitutivos e os estatutos dos partidos políticos (BRASIL, 1973).
Como visto anteriormente, a personalidade jurídica inicia-se com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Só a partir daí, que a pessoa jurídica passa a ser principal nas relações contratuais e extracontratuais originadas da sua atividade econômica, e não de seus sócios, estabelecendo a sua independência processual e patrimonial independente de cada um de seus componentes.
O registro no órgão competente, de acordo com Gonçalves (2020), além de servir de prova, tem, pois, natureza constitutiva, por ser atributo da personalidade, da capacidade jurídica, que com o registro se estende a todos os campos do direito, não se limitando à esfera patrimonial.
Em razão da aplicação por analogia das regras relativas à associação, Loureiro (2017, p. 383) expõe as regras para registro do ato constitutivo das organizações religiosas no RCPJ:
5) fontes de recursos para a manutenção; 6) informação sobre o fato de o estatuto ser reformável ou não e, quando for o caso, as condições para a reforma; 7) modos para a dissolução da entidade (LOUREIRO, 2017, p.383).
No mesmo sentido, a jurisprudência administrativa da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, de nº 34.701, sob relatoria do Desembargador José Carlos Gonçalves Xavier de Aquino, segundo a qual:
Passe-se, pois, a análise da (im)possibilidade de ação de regresso em face do líder espiritual das organizações religiosas, especificamente das igrejas evangélicas, em razão da ausência de jurisprudências que tratassem de outras organizações religiosas, pelos atos praticados em nome desta, à luz das funções e atribuições do RCPJ.
Sob esse entendimento, a 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na apelação cível de nº 1.0382.14.006978-4/001, sob relatoria do Desembargador Pedro Bernardes, assentou que os atos praticados por membro de organização religiosa em nome da pessoa jurídica a esta são atribuíveis. Como se lê:
Nessa perspectiva, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, na apelação cível de nº 1008685-49.2017.8.26.0562, sob relatoria do relator Desembargador Nilton Santos Oliveira, julgou:
104 do CC, inexistindo quaisquer dos casos de nulidade e anulabilidade de negócios jurídicos dos arts. 166 e seguintes do CC, e se o estatuto da instituição religiosa previu a possibilidade de que representante constituído atue em nome da instituição religiosa ativa, passiva e extrajudicialmente, fica a pessoa jurídica obrigada pelos atos praticados por seus administradores (art. 47, CC), ressalvado o direito de regresso (art. 43, CC) que, se exercido, deverá sê-lo pela via procedimental apropriada (GOIAS, 2013, grifo nosso).
Sob essa perspectiva, o Conselho de Magistratura do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na suscitação de dúvida de nº 0001456-28.2017.8.19.0052, sob relatoria do Desembargador Sérgio Ricardo De Arruda Fernandes assentou:
5. Considerações finais
A partir da análise da (im)possibilidade de ação de regresso em face do líder espiritual das organizações religiosas, pelos atos praticados em nome destas, à luz das funções e atribuições do RCPJ, verificou-se na primeira seção do trabalho que a natureza jurídica das organizações religiosas é sui generis, visto que não se assemelham às associações privadas no que concerne ao funcionamento, interesses e atividades, porém, a elas são aplicadas as regras destas, por analogia e por isso, embora assegurada a sua liberdade de funcionamento, o controle de legalidade e legitimidade constitucional de seu registro e a possibilidade de reexame, pelo Judiciário, da compatibilidade de seus atos com a lei e com seus estatutos, não lhe são afastados.
Na terceira seção verificou-se que os tribunais brasileiros possibilitam a propositura de ação de regresso em face do líder espiritual das organizações religiosas, pelos atos praticados em nome destas, tendo em vista a sua responsabilidade objetiva. Por isso, ressaltou-se a importância da regularidade da organização religiosa no respectivo RCPJ.
Conclui-se, portanto, que os líderes espirituais podem ser responsabilizados pelos atos praticados em nome das organizações religiosas a qual fazem parte, se referidos atos não estiverem dentro dos limites impostos por seu estatuto social.
6. Referências
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Por: Milena Siqueira Santos
Advogada, especialista em Direito de Família e Sucessões. Pós-graduada em Direito Notarial e Registral pela Faculdade Arnaldo Jassen.
Fonte: Assessoria IRTDPJBrasil
01/08/2022